quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Beato Carlos de Foucauld


Charles nasceu em 1858. Morreu assassinado na Argélia, em 1916, aos 58 anos. Tinha sido oficial do exército francês e comandou expedições militares na África. Aos 28 anos, converteu-se ao Evangelho de Jesus. Ingressou num mosteiro trapista das irmãs clarissas em Nazaré. Não satisfeito, retirou-se para uma vida simples e oculta, a exemplo de Jesus. Retornou, mais tarde, para a Argélia e ali, no seguimento radical do Mestre, tornou-se monge sem convento, em contato direto com as populações tuaregs, até ser assassinado.
Vivemos numa época em que a Igreja está a tornar-se uma minoria em muitos países tradicionalmente considerados cristãos. Ao mesmo tempo, está a espalhar-se pela Igreja a consciência e a necessidade dum testemunho evangélico por parte de muitas pessoas que, com humildade, sem arrogância e no escondimento, sabem viver e anunciar o Evangelho a sectores da sociedade que vivem em situações aparentemente extremas e paradoxais. O beato Charles de Foucauld foi certamente um cristão que soube interpretar e proclamar o Evangelho utilizando a eloquência do silêncio, a força da fraqueza e a sabedoria da loucura da cruz.
Charles de Foucauld nem sempre foi homem “perfeito”. Pelo contrário, a sua conduta foi por muitos anos oposta aos padrões cristãos tradicionais. Era filho do seu tempo, com muitas fraquezas. Mas um dia, o encontro com Deus causou nele uma revolução tão grande que foi impelido a iniciar uma caminhada decisiva para a santidade – original, definitiva, sem olhar para trás. Ele continua a interpelar-nos também a nós ainda hoje, convidando-nos a deixar a nossa rigidez, as fronteiras tranquilizadoras ou os pequenos confortos espirituais, para responder aos inúmeros desafios que ele enfrentou, mesmo que nem sempre tenha podido cantar vitória. O seu testemunho provoca-nos a que revejamos talvez até muitos aspectos da nossa vida e da nossa missão e a pôr em prática um empenho mais decidido na procura da santidade neste primeiro ano do biénio que irá testemunhar o nosso esforço por atingirmos esta meta.
Durante esta minha reflexão convosco deixarei que o Beato Charles de Foucauld fale por si, para que nos revele a sua vida, a sua relação com Jesus, a sua caminhada de discernimento e de consagração a Deus enquanto missionário dos Tuaregues do Sara. Para nós vai a tarefa de nos deixarmos contagiar pelo seu testemunho de vida e de santidade.

  1. Breve perfil histórico-biográfico do “Irmão Universal”
O Beato Charles de Foucauld (Irmão Carlos de Jesus) nasceu em Estrasburgo, França, a 15 de Setembro de 1858, de família nobre. A sua primeira infância ficou marcada pela religiosidade profunda de sua mãe. A senhora De Foucauld soubera indicar aos seus dois filhos, Charles e Marie, o caminho na misericórdia mais com os gestos do que com as palavras e de forma eficaz. A sua lembrança ficou imprimida nos seus corações de forma indelével. Faleceu a 13 de Março de 1864, aos 34 anos de idade; em 19 de Agosto do mesmo ano faleceu também o marido. Os filhos órfãos foram entregues ao avô paterno, um coronel reformado, que tinha na altura cerca de setenta anos. O Charles tinha apenas 6.
Mas o Charles perdeu a fé aos dezasseis anos e ficou num estado de indiferença religiosa durante mais de doze anos. Era conhecido por todos como amante do prazer e da vida fácil, conseguindo revelar, no entanto, uma vontade forte e constante nos momentos difíceis
Em 1878 foi para a tropa como sub-tenente e partiu para a África, naquela época em que a França estava a colonizar a Argélia. A seguir, despediu-se da vida militar para se dedicar à exploração de Marrocos (1883-1884), onde organizou uma expedição perigosa, percorrendo 3 mil quilómetros camuflado de rabino judaico. Foi assim que descobriu, tanto entre os muçulmanos como entre os judeus, a lei sagrada da hospitalidade. Para Charles, foi coisa desconcertante descobrir amigos entre pessoas estranhas. O resultado dessa viagem foi um importante estudo geográfico daquele país, o qual veio a merecer-lhe a atribuição da medalha de ouro da Sociedade Geográfica.
A exploração de Marrocos transformou-o. Deu-se com os muçulmanos «que vivem continuamente na presença de Deus» e ficou «fortemente perturbado» com isso, a pontos de confidenciar no papel a seguinte reflexão: «Ver estas almas que vivem na presença contínua de Deus fez-me intuir algo de maior e mais verdadeiro que as ocupações mundanas». A pergunta sobre Deus surgiu-lhe então como consequência imediata desta experiência: «Meu Deus, se existis, fazei com que vos conheça!».
Voltando à França, foi recebido com afecto e discrição pela família de sua irmã, que era profundamente cristã. Logo se lançou à procura de Deus, tendo encontrado um padre para o instruir. Foi então guiado pelo Abbé Henri Huvelin e encontrou Deus em Outubro de 1886. Tinha 28 anos. «Como passei a acreditar que havia um Deus, logo compreendi que nada mais podia fazer senão viver só para Ele»,
Fez depois uma peregrinação à Terra Santa, que lhe revelou a sua vocação: seguir e imitar Jesus na sua vida de Nazaré. Viveu sete anos nos Trapistas, primeiro em Nossa Senhora das Neves e depois em Akbès, na Síria. A seguir passou a viver perto das Clarissas de Nazaré, na oração, na solidão e em grande pobreza. Foi ordenado sacerdote aos 43 anos (1901) na Diocese de Viviers e obteve licença para ir para o deserto argelino do Sara, primeiro em Beni-Abbés , pobre no meio dos pobres, e depois em Tamanrasset com os Tuaregues de Hoggar.
O seu sonho foi sempre o de partilhar a sua vida com os outros. Escreveu várias Regras, com a ideia de que a “vida de Nazaré” poderia ser vivida por todos e em toda a parte.
Na noite de 1 de Dezembro de 1916, enquanto o seu ermitério estava a ser saqueado, um jovem matou-o com um tiro na cabeça. Contra a vontade do próprio Charles de Foucauld, que queria ser sepultado em Hoggar, os seus restos mortais (à excepção do seu coração, que ficou numa urna em Tamanrasset) foram, após alguns anos, trasladados para El-Golea, que fica a mais de mil quilómetros a norte e a 950 quilómetros de Argel. O lugar que agora acolhe o Tuaregue Universal é austero e fica próximo da primeira igreja construída pelos Padres Brancos no Sara. É lá que jazem os restos daquele que quis testemunhar a fraternidade universal para lá de qualquer filiação religiosa e nacional.

  1. Uma caminhada sobre ondas
Para bem compreender o Beato Charles de Foucauld é preciso lembrar que ele foi um homem totalmente dominado por Deus. Tal como ele confessou: «Tão logo compreendi que Deus existe, compreendi que nada mais podia fazer que viver para Ele: a minha vocação religiosa nasceu ao mesmo tempo que a minha fé; Deus é tão grande! E entre Deus e tudo aquilo que não é Deus há uma diferença tão grande!». Assim, renovou a sua opção radical pela “sequela” (ou seguimento) de Cristo, em etapas bem distintas: através do encontro com os lugares santos, na austeridade da Trapa, no serviço humilde em Nazaré. Para si só queria a oração, a pobreza, a penitência, enquanto que aos outros dava o tesouro do amor que ardia no seu coração. Depois da ordenação sacerdotal (1901) e da vivência de Beni-Abbés, estabelecer-se-ia definitivamente em Tamanrasset (1905), em pleno deserto, para dedicar a sua vida aos Tuaregues.
Escolheu portanto um “modo novo” de viver a sua vocação, que poderíamos chamar de “paradoxal”. Foi monge sem mosteiro, mestre sem discípulos, eremita entre as pessoas para as levar a Jesus. Como fundador, escreveu várias Regras que só depois da sua morte iriam dar origem a novas Famílias Religiosas.
O maior paradoxo foi o de ter colocado as suas passadas exactamente sobre as pegadas de Jesus. O testemunho de santidade que ele oferece à Igreja e ao mundo está marcado por um estilo singular de “sequela” que se poderia chamar de “coincidência dos opostos”: contemplação e acção, paragem solitária com Deus e dedicação incondicionada aos irmãos, aniquilação da cruz e amizade fraterna, heroicidade de vida e necessidade incontrolável de o anunciar aos outros. Enamorado de Jesus, quis segui-lo, imitá-lo e anunciá-lo até aos últimos confins da terra e até ao fim dos séculos.

  1. O discernimento, garantia de fidelidade à vontade de Deus
Uma vida ao ritmo de «decisões» definitivas
Cada etapa da vida do beato Charles de Foucauld traduziu-se numa mudança evidente de rumo e numa realização progressiva da vocação que entrevira. Uma etapa após outra, o germe inicial atingia a maturidade graças a passagens e mudanças contínuas; e a sua vocação, embora se fosse desenvolvendo, ia ficando fiel ao ideal inicial.
Em 1886, decidira oferecer-se inteiramente a Deus, viver para Jesus Cristo. Abraçou a vida de trapista. Passados alguns anos deixou a Trapa e foi viver à sombra do convento das Clarissas de Nazaré. Preparou-se para o sacerdócio com a ideia de ir para as regiões mais abandonadas da terra para lá tornar presente o Cristo. Penetrou no deserto, cada vez mais no interior do Sara, até á suprema imolação de si mesmo.

Discernimento da vontade de Deus
A procura duma forma de vida que lhe permitisse imitar cada vez mais perfeitamente a vida de Jesus em Nazaré não foi fácil nem rápida, para ele. Aceitou o peso e o fascínio duma procura atenta que nunca foi realizada, orientada ou dirigida pela sua liberdade pessoal. De facto, a vontade de Deus conhece-se prestando atenção aos movimentos do Espírito, cuja acção não obriga nem desresponsabiliza a pessoa humana.
A sua caminhada de discernimento sempre se distinguiu por um amor radical ao Senhor, pelo empenho em se conformar inteiramente com Ele, sem nunca esquecer a absolutez do dom recebido e o empenho em o restituir mediante a oferta de si mesmo ao Senhor.

Auscultação da Palavra de Deus
A Palavra reproduz no seu coração os sentimentos de Jesus; ajuda-o a colocar-se numa atitude de atenção e percepção da vontade do pai; dá-lhe a luz e a força do Espírito, ambas necessárias para realizar a missão salvadora do Verbo, no estilo específico da sua vocação. Graças a um método que envolvia inteligência e sensibilidade, o Beato Charles de Foucauld soube entrar numa relação viva com Jesus e aplicar à vida quotidiana o projecto que brotava da própria Palavra.

Autoconhecimento
O Beato Charles de Foucauld revela saber avançar no caminho da exploração de si mesmo, do rico e misterioso universo das suas próprias capacidades e limitações, consciente de que Deus não o obriga a vestir um hábito contrário à sua estatura. Os seus escritos revelam vigilância na delicada interpretação dos estados afectivos: regista com diligência os sentimentos de alegria e paz, de cansaço e de perturbação, que experimentara num dado período. A análise dos estados de espírito – como bem sabemos – é elemento importante que o sério discernimento não pode evitar nem deixar de sublinhar.
«O amor não consiste em sentir que se ama; mas em querer amar: quando se quer amar, ama-se…Quanto ao amor que Jesus tem por nós, Já Ele o demonstrou à saciedade, porque nós acreditamos nele sem o sentirmos: sentir que O amamos e que Ele nos ama, seria atingir o paraíso; e o paraíso não existe aqui em baixo, salvo em raros momentos e excepções». Por isso torna-se indispensável conformar a nossa sensibilidade com o sentir de Cristo (cfr. Fil 2, 5) para aprender a ler a história como Ele a vê, a alegrarmo-nos com aquilo que a Ele causa prazer; a entristecermo-nos com aquilo que o fere (cfr. Rm 12, 2). Assim, Charles procura alimentar a sua imaginação com o Jesus dos Evangelhos para aguçar a sua visão, para formar cristologicamente a sua interioridade e adquirir um autêntico gosto espiritual.

A atenção para com a história
O Beato Charles de Foucauld está plenamente convencido de que a vontade de Deus se revela mais claramente onde a caridade for solicitada a identificar e a responder às necessidades sempre novas das pessoas e às urgências vivas e palpitantes da história do seu tempo e do contexto em que vivia. «É preciso ir até onde a terra já não é santa, aonde se encontram as almas em maior necessidade». E assim, ultrapassando os limites estreitos do projecto pessoal, está sempre disponível para responder às necessidades que pouco a pouco vão sendo identificadas por aqueles que têm a responsabilidade dos cuidados pastorais.

A direcção espiritual
No início da sua procura de Deus, Charles de Foucauld aspirava à fé como se fosse uma certeza racional: «Esta religião poderia não ser uma loucura…talvez seja a verdade…Lancemo-nos para o estudo desta religião: arranjemos um professor de religião, um padre instruído e vejamos que virá cá para fora, e se há razão para acreditar no que ele diz». Logo foi procurar um “mestre”, encontrando-o na pessoa do Padre Henri Huvelin. Não tinha vontade de se confessar; apenas queria ter informação sobre a religião católica. Mais tarde, num dos seus retiros espirituais viria a escrever, ao falar a Deus do seu mestre de espírito: «Puseste-me sob as asas deste santo e aí fiquei: com as suas mãos tu me levaste desde então e não tem havido senão uma graça atrás da outra: eu pedia lições de religião mas ele fez-me pôr de joelhos e confessar-me; e enviou-me logo a fazer a comunhão. […] Desde então que só tem havido uma graça após outra». Aquele venerando ancião dirigiu-o sempre com mão firme. Era um homem de Deus, um homem que «se tornara oração», como o próprio Foucauld veio a dizer mais tarde.
A santidade é sempre a força que maior poder de atracção exerce sobre as pessoas. O Charles considera a submissão ao director espiritual uma garantia de segurança na difícil procura da vontade divina. Expõe os seus sentimentos em cada carta que lhe escreve, abre a sua alma o mais possível, tenta colocar-se num estado de indiferença e promete renunciar a tudo se o seu director espiritual lho pedir, terminando sempre com uma confissão de obediência e com actos de abandono ao juízo do seu director.

Disponibilidade para a conversão contínua
É impressionante a radicalidade da conversão de Charles de Foucauld. Quebra com o seu passado, decidido a colocar-se radicalmente ao serviço de Deus. Nunca foi um homem de meias medidas. Sempre quis ir até ao fundo das coisas em tudo. Até na sua conversão: «Não procuremos corrigir-nos a meias, ou converter-nos a meias: isso será impossível. É preciso chegar a converter-nos completamente, se não nunca nos converteremos». Afinal trata-se de passar dum querer individualista à adesão total e livre ao projecto de Deus: «Tudo me diz para me converter; tudo me canta a necessidade de me santificar; tudo me repete e grita para que, se um bem que eu quero não aparecer, será apenas por minha culpa; e então eu tenho que me despachar na conversão».
No seu itinerário de conversão, o Charles só tem um modelo: Jesus. «Segue-me, apenas a mim…Não venhas a Betânia para me ver a mim e também a Lázaro; vem para me ver, só a mim… Pergunta-me o que eu fazia; ‘Examina as Escrituras’ (Actos, 11); observa os santos, não para os seguires, mas para veres como me seguiram e pega, de cada um, aquilo que achares que vem de mim, ou é imitação de mim…e segue-me, só a mim».
Desde este momento, O Charles apenas toleraria um desejo: o de responder a este amor de Deus, impelido por uma necessidade desmedida de o imitar: «Eu amo Nosso Senhor Jesus Cristo; amo-o e não poderei levar uma vida diferente da dele».

  1. Espiritualidade radical e profética
O núcleo central da espiritualidade de Charles de Foucauld é a “espiritualidade de Nazaré”. Nazaré é um lugar, uma experiência, um símbolo na sua espiritualidade. A investigação, por vezes bastante fiel, de muitos exploradores do seu itinerário espiritual, parece ser unânime em afirmar que viver “como pequeno irmão de Jesus em Nazaré” é certamente a constante que alumia a sua aventurosa vocação religiosa e unifica o itinerário da sua maturação eclesial. Ser um pequeno irmão de Jesus equivale a dar vida a uma relação teologal que se exprime numa coabitação fraterna com o Senhor em prol dos outros.
Os elementos componentes da espiritualidade de Nazaré podem sintetizar-se da seguinte forma:

Imitação do “nosso muito amado Senhor Jesus”
«Quem quiser viver segundo a espiritualidade de Nazaré terá como regra perguntar-se a todo o momento sobre que pensaria, diria e faria Jesus se estivesse no seu lugar, e fazê-lo. Esforçar-se-á continuamente por se tornar cada vez mais semelhante ao Nosso Senhor Jesus tomando como modelo a sua vida de Nazaré, que nos serve de exemplo para todas as situações». O beato Charles de Foucauld, desde que se converteu, recebeu a graça duma profunda amizade com Cristo, a pontos de não ter senão um desejo: o de ser como Ele. É ele próprio quem o diz numa sua meditação, cinco meses antes da sua morte: «Ficar sempre em último lugar: “Quando vos convidarem a um banquete, sentai-vos sempre no último lugar”. Foi isto que Ele fez, ao participar no banquete da vida, e fê-lo até à morte».

Adoração eucarística
A Eucaristia, que marcou a sua vida desde o momento da conversão, sempre permaneceu como centro da sua oração. Passava longas horas em adoração diante da Presença eucarística, na companhia do seu “muito amado irmão e Senhor Jesus”. Pouco a pouco, diante da Eucaristia, foi amadurecendo na sua vocação sacerdotal, para oferecer este “divino banquete…aos estropiados, aos cegos e aos pobres, quer dizer, às almas que não têm sacerdotes”. Construiu em Beni-Abbés uma capela e decorou-a ele próprio, desenhando na tela um Cristo que abre os braços a receber, abraçar e chamar todos os homens e a dar-se a eles. É naquele sítio que ele passa longas horas, do dia e da noite, em adoração ou em meditação. Vive com ele na sua habitação e mantém com Ele um diálogo contínuo de amigo para amigo, um diálogo que continua ao longo da noite ou nas viagens pelo deserto.

Opção preferencial pelos pobres
«A opção pelos mais pobres será a tarefa da minha vida. Envidarei todos os esforços sobretudo pela conversão daqueles que são espiritualmente mais pobres, isolados, cegos, as almas mais abandonadas, as mais doentes, as ovelhas mais desesperadas».
Quando em Beni-Abbés, poucos dias antes da sua chegada, se deu conta da miséria material e moral do lugar, decidiu que o seu primeiro trabalho seria “ajudar os escravos” que eram tratados com muita dureza pela população. O segundo trabalho seria acolher os viajantes pobres. Por fim, iria oferecer instrução escolar às crianças que ficavam sozinhas todo o dia.
Optar pelos pobres não é porém a mesma coisa que amar os pobres. Optar por eles equivale a viver no seu mundo e manifestar-lhes um amor crítico, solidário e empenhado. O Beato Charles de Foucauld estava convencido de que é preciso não apenas ter grande amor pelos pobres, mas sim ter um amor que parte dos pobres e estabelece com eles uma aliança estável. E assim, perante o seu confessor, fez voto de nada possuir para seu uso pessoal senão quanto um pobre operário também tivesse. E cultivava no coração o projecto de fundar uma nova Congregação com a finalidade de «viver o mais exactamente possível a vida de Nosso Senhor, vivendo unicamente do trabalho das próprias mãos […], não possuindo nada […]. Não formar senão apenas pequenos grupos […], e espalhar-se sobretudo por países não cristãos».

Amor à Igreja
«Apego inviolável à Igreja, que é Esposa de Jesus, em que ele vive. Ele é a sua alma, ama-a como sua esposa […]. Apego a tudo o que dela vem, das suas instituições, dos seus ritos, dos seus ministros […]. Apego ao Santo Padre, seu chefe e representante. Rezarei muitíssimo pelo Santo Padre, pelas suas intenções […]. Quanto mais se ama a Igreja, tanto mais possui o Espírito Santo que a anima. Quanto mais se ama a Igreja, tanto mais se ama Aquele de que ela é corpo, Nosso Senhor Jesus Cristo».

Obediência ao Director Espiritual
«A escolha do director espiritual tem uma importância vital porque tal for o mestre, tal será o discípulo. Deve ser uma pessoa devota, prudente, instruída e perita. Uma vez feita essa escolha depois de ter rezado ardentemente a Deus, devemos confidenciar-lhe a nossa vida, pedir-lhe conselho e ser obedientes».
O Beato Charles de Foucauld teve sempre um relacionamento profundo e fiel com o seu director espiritual – como a de filho em relação ao pai. Quando ele morreu, escreveu a um amigo dizendo-lhe que o seu Padre Espiritual fora um enxerto paciente do amor de Jesus no mais íntimo do seu ser.

Oração e fecundidade contemplativa
«Quem desejar viver segundo a espiritualidade de Nazaré deve integrar-se no projecto pastoral da Igreja local, procurando tornar-se útil segundo a sua vocação, para além de ser solidário sobretudo com aqueles que se encontram nos lugares mais difíceis de missão e de colaboração fraterna».
O Charles estava convencido de que há um tipo de fecundidade que não depende da acção: e é aquela que possui espírito contemplativo, que procura viver o espírito de Nazaré, a realidade concreta até ao fundo, no momento actual, que dá importância aos relacionamentos fraternos e de amizade, bem como à gratuidade do dom.
Ele mesmo fazia experiência contínua disso vivendo “a vida de Nazaré” com os nómadas mais isolados, entre os mais pobres de Beni-Abbés. Em 1911 estabeleceu-se em Asekrem por se tratar de um lugar de passagem das caravanas, que assim lhe permite cultivar relacionamentos com os Tuaregues e estabelecer uma profunda amizade com eles.

Evangelização libertadora
«Quem pretender viver segundo a espiritualidade de Nazaré deverá estar consciente de que ela é a base da sua existência, quer se encontre no deserto quer na missão apostólica. Quer dizer que não pode haver apostolado sem Nazaré nem deserto sem Nazaré, nem Nazaré sem deserto nem apostolado».
Para que se dê uma inserção em qualquer lugar da terra, Charles acredita que o cristão deverá partir sempre do modo de agir de Deus, tal como aparece nos Evangelhos, e acolher e apreciar tudo o que de bom e peculiar existe em cada povo e cultura.

  1. Um santo à nossa medida
Jesus, só Jesus, Jesus em tudo, Jesus sempre”.
É convicção profunda do beato Charles de Foucauld que Jesus Cristo deve estar no centro da nossa vida para que possamos ter gosto em conhecê-lo, deixar-nos seduzir por ele, segui-lo e imitá-lo, levar a nossa cruz atrás dele. Desta forma, permitimos-lhe que nos diga a verdade a respeito da nossa vida, dos nossos desejos, dos nossos projectos e da nossa história. E isto tem de acontecer mesmo à custa do martírio, que ele não excluía: «Pensa que terás de morrer mártir, despojado de tudo, estendido por terra, nu, irreconhecível, coberto de sangue e feridas, violenta e dolorosamente assassinado…e deves desejar que seja hoje». Assim foi com ele, que morreu “violentamente e dolorosamente assassinado” tal como sempre tinha desejado, para se configurar com Cristo até na morte.

Ser caridosos, mansos, humildes com todos: é isto que se aprende de Jesus”.
A exemplo de Charles de Foucauld, também nós somos chamados a viver um novo modo de ser Igreja, sacramento de salvação para a humanidade. Na fraternidade evangélica, antes de mais, que não é apenas uma fraternidade reunida no amor à volta de Jesus e com Jesus, mas uma fraternidade que faz da caridade, tanto por dentro como por fora, o mandamento supremo até “fazer da salvação do próximo, bem como da salvação pessoal, a grande tarefa da vida”.
Este ideal só é atingível se formos capazes de “ver um irmão em cada ser humano”. Se vivermos superficialmente, só acolhemos o outro superficialmente. Se vivermos em profundidade, que é onde Deus habita, acolheremos o outro com profundidade, ou seja, como irmão e filho do mesmo Pai.
Somos chamados a viver uma vida comunitária que saiba apreciar e valorizar a vida ordinária, diária, o lugar onde realizaremos santidade. Uma santidade que se manifesta na comunhão profunda com Deus, no trabalho e na proximidade com as pessoas para tornarmos a nossa vida mais semelhante à de Jesus nos trinta anos que passou em Nazaré. Ele ensina-nos a não fugir ao aspecto quotidiano e ordinário da nossa existência, à procura de experiências extraordinárias. Só se soubermos viver de maneira extraordinária e com amor o “ordinário” é que conseguiremos que os nossos relacionamentos se tornem cada vez mais justos, mais verdadeiros, mais fraternos e mais ricos em humanidade e ternura para com os outros.

Ler e reler incessantemente o Santo Evangelho”
O Beato Charles de Foucauld converteu-se a Deus através do Evangelho. A procura vocacional e a sua vida espiritual como um todo desenrolaram-se até à morte sob o signo do Evangelho meditado, ruminado, assimilado e vivido. Nutria um grande amor pelo Evangelho que via não como um estudo de normas e leis, mas como encontro com “o esposo, o namorado, o bem-amado”, para assim lhe poder “agradar, servir, glorificar, consolar, como deseja que tudo seja feito” A vida de comunidade e o caminho do discipulado, nas suas várias modalidades e critérios, juízos e valores, devem passar pela peneira da Palavra. «Ler e reler incessantemente o Santo Evangelho para ter sempre diante da mente as acções, as palavras, os pensamentos de Jesus para poder pensar, falar e agir como Jesus, seguir os exemplos e os ensinamentos de Jesus e não os exemplos e os modos de fazer do mundo, em que recaímos tão rapidamente mal afastamos os nossos olhos do divino Modelo».
Na vida de qualquer comunidade missionária, a primazia do Evangelho deve assemelhar-se à semente que germina e produz fruto no escondimento e no silêncio, para depois de tornar alimento abundante para todos aqueles que têm fome.

Fazer-se todo para todos para tudo dar a Jesus”
É outra característica que deve distinguir a nossa vida. Uma vida que, como a de Jesus Cristo, se torna dádiva para bem de todos os homens, especialmente dos pobres com que Jesus se identificou (cfr. Mt 25, 31-46). Fomos chamados, até mesmo à luz do testemunho e doutrina de Charles de Foucauld, a revalorizar a nossa presença missionária na fraqueza e na eficácia evangélica dos meios pobres. «Os meios de que Ele (Jesus) se serviu no presépio, em Nazaré, na cruz, são: pobreza, abjecção, humilhação, abandono, perseguição, sofrimento e cruz. Eis as nossas armas, as mesmas do Esposo divino, que nos pede para deixarmos continuar em nós a sua vida, ele o único amante, o único esposo, o único Salvador e até mesmo a única Sabedoria e única Verdade…».
Tornar-se uma Maria viva e operante”
«Eu faço o propósito de guardar em mim a vontade de trabalhar para me transformar em Maria para me tornar uma outra Maria vivente e operante».

Também o nosso modo de viver e trabalhar no meio do povo deve encontrar na experiência mariana de Charles de Foucauld mais um empurrão para incarnar aquele estilo de consolação “materno” e “missionário” que aprendemos com o nosso Beato Fundador

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